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Contratos Existenciais e a Virada do Direito Contratual

Por Larissa Vargas

 

 

As relações humanas são permeadas por contratações, das mais triviais às mais complexas. Pensar em contratar leva-nos quase automaticamente a pensar em quanto iremos gastar ou ganhar com o negócio jurídico pretendido. Com efeito, o tratamento jurídico do contrato foi concebido sob ótica fortemente patrimonialista: se eu contrato, logo ganho ou gasto dinheiro. Embora a dinâmica contratual seja reflexo de uma série de interesses e necessidades econômicas, um importante aspecto do contrato já vem chamando atenção há bom tempo dos estudiosos do direito1 e, há menos tempo, da jurisprudência brasileira: os contratos existenciais.

 

Não se nega que todo contrato apresenta aspecto, direta ou indiretamente, patrimonial. No entanto, a percepção de que determinados contratos são marcados por interesses fortemente existenciais tem aberto portas a soluções interessantíssimas diante de problemas concretos. Por exemplo, pensemos no contrato de compra e venda, que tem por principais prestações a entrega da coisa e o pagamento do preço (dinheiro). Parece óbvia a conclusão de que a compra e venda é um contrato puramente patrimonial. No entanto, seria razoável empregar à compra e venda de uma joia o mesmo tratamento jurídico que a uma compra e venda de medicamento? Ainda, poderia se dizer que um contrato de financiamento de uma casa essencial à sobrevivência de determinada família pode ser analisado sob a mesma ótica pela qual se interpretaria um contrato de financiamento de um carro de luxo?

 

O necessário tratamento jurídico diverso a modalidades contratuais que, quando concebidas, vislumbravam um contrato exclusiva ou majoritariamente patrimonial precisa ser revisitado quando problemas sérios ocorrem no contexto de contratos que, embora envolvam dinheiro, enquadram-se como existenciais pelo forte e prevalente interesse existencial que revelam.

 

Claro exemplo de contrato existencial reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça é o contrato de plano de saúde, regulado pela Lei 9.656/1998. Com base no enquadramento da saúde como direito fundamental apto a impor tratamento jurídico diverso, o Superior Tribunal de Justiça vem considerando diversas cláusulas como abusivas e fundamentando suas decisões, dentre outros aspectos, na percepção de que este contrato é existencial e merece ainda maior proteção.

 

Nesse contexto, destaca-se julgamento do Recurso Especial 1.450.134 - SP2, cuja discussão girava em torno da possibilidade de planos de saúde limitarem a quantidade de bolsas de sangue a serem usadas pelos pacientes. Em seu voto, o Ministro Luis Felipe Salomão sustentou que os contratos relacionados à assistência à saúde são classificados como existenciais, pois têm como objeto bem de natureza essencial à manutenção da vida. Afirmou, ainda, que “o atributo econômico, presente em qualquer relação negocial, pode e deve sofrer ponderações razoáveis em face do valor da vida humana”.

 

Na mesma toada, o STJ já enquadrou até então como abusivas em contratos existenciais cláusulas quem excluem transplante, afastam tratamento de doenças infectocontagiosas de notificação compulsória, limitam as sessões de radioterapia e quimioterapia, preveem o não custeio de prótese imprescindível para o êxito do procedimento cirúrgico coberto pelo plano e limitam o tempo a internação hospitalar do segurado.

 

Vê-se, então, que a identificação de contratos como existenciais mostra-se bastante relevante para a resolução de problemas para os quais o direito contratual ainda fortemente marcado por ótica patrimonialista revela-se insuficiente. Contratos existenciais, porque marcados por interesse ligados à dignidade humana ou a bens essenciais da vida3, devem ter tratamento jurídico diverso e esta tendência, felizmente, parece ser crescente no Poder Judiciário brasileiro.

 

 

 

 

 

Larissa de Lima Vargas Souza é Advogada, Mestre em Direito Civil pela UERJ, Professora de Direito Civil.

1 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Diálogos com a doutrina: entrevista com Antonio Junqueira de Azevedo. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 9, n. 34, abr./jun. 2008, p.304.

2 Recurso Especial 1.450.134 – SP. Superior Tribunal de Justiça Rel. Min. Luiz Felipe Salomão. Julg. 25 out. 2016.

3 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

 

 

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