TV PIBCI

Artigos / Habeas Corpus


Ir e Vir ou Não: Eis a Questão!

Por Vagner de Souza

 

 

Dispensa grandes comentários toda a celeuma que vivemos nesse inigualável e inédito momento pelo qual estamos passando na longa história da humanidade. Creio que ninguém, nesses tempos modernos, imaginou que um dia experimentaríamos tamanha limitação e insegurança como a que estamos vivenciando com a praga do covid-19, o corona vírus.

 

Quantos danos de toda a natureza estamos sofrendo. Vidas, saúde, empregos, paz de espírito, tudo se esvaindo diante de perplexos e confusos cidadãos que, até ontem, viviam normalmente suas rotinas.

 

Dentre as grandes discussões às quais temos sido submetidos, uma das maiores talvez seja aquela que trata do direito de continuarmos circulando livremente pelas ruas e demais lugares públicos, mesmo em meio aos números capciosos de mortes e infectados apregoados pela mídia alarmista e a grita generalizada do “fique em casa”.

 

Mas, afinal de contas, o que devemos fazer? E, principalmente, o que podemos fazer?

 

Tal indagação não possui resposta fácil, visto que importa no confronto entre valores de alta relevância para todos nós, no caso: o direito de ir e vir x o direto à preservação da saúde.

 

Pois bem, dirimir tal dúvida passa pelo entendimento não apenas da importância imediata de tais valores, mas também das consequências que podem advir da indevida supressão deles, notadamente do de livre locomoção.

 

Até porque, como alguém já disse “o Estado não costuma devolver integralmente direitos que retirou dos cidadãos”.

 

Nesse contexto, se olharmos para a história, veremos que, por incrível que pareça, apenas a pouco tempo o direito de ir e vir foi plenamente alcançado, visto que, em regra, as pessoas tinham suas liberdades regradas por leis severas, oriundas de regimes ditatoriais, que decidiam não apenas quem ia e vinha, mas, até mesmo, quem vivia ou morria.

Na verdade, apenas por volta do ano 1215, o rei inglês João Sem Terra assinou, forçado pelos barões da região, a chamada Magna Carta, que limitou seu exercício no trono e, em seus artigos 41 e 42, previu o que hoje entendemos como liberdade de locomoção.

 

Referida norma concedia aos comerciantes e homens livres apenas, a liberdade de sair e entrar na Inglaterra, nela residir e percorrer, tanto por terra como por mar, ressalvadas as situações de guerra”, o que significa dizer que tal direito não era extensivo a todas as pessoas, mas somente a um grupo seleto da população.   (g.n)

 

E a difusão do conceito de liberdade de locomoção só se espalhou pelo mundo mediante árduas lutas, notadamente após as conquistas obtidas com a Revolução Francesa e os valores que disseminou.

 

Assim, não à toa tal direito é tão caro a todos os cidadãos, pois foi conquistado após um longo e doloroso processo de amadurecimento das instituições e fortalecimento do processo civilizatório, motivo pelo qual há tanta resistência quando se fala em retirá-lo ou mesmo limitá-lo.

 

Em nossa Carta Magna, tal direito é previsto no artigo 5º, inciso XV, que estabelece ser “livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

 

Trata-se de um direito de primeira dimensão que trouxe obrigações negativas para o Estado, ou seja, obrigação de não intervir, a fim de proteger a esfera da autonomia pessoal frente às eventuais arbitrariedades cometidas pelo Estado.

 

Aliás, sua importância é reforçada pela existência do habeas corpus, remédio constitucional dirigido à tutela da liberdade de locomoção, o qual, inclusive, é considerado cláusula pétrea.

 

Entretanto, nenhum direito fundamental pode ser considerado absoluto. Assim, o próprio legislador constitucional criou os casos em que tal regra pode ser excepcionada, são elas: (I) prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de Juiz; (II) prisão civil, administrativa ou especial para fins de deportação, nos casos cabíveis na legislação específica; (III) durante vigência de estado de sítio, para determinar a permanência da população em determinada localidade, sendo esta última a única situação na qual há permissão expressa de restrição generalizada deste direito.

 

Ocorre que, a pandemia do corona vírus chegou com tamanha força  - inclusive midiática -, que obrigou a que nossos governantes editassem normas infraconstitucionais prevendo severas restrições ao direito de locomoção, como, por exemplo, a Lei nº 13.979/2020, regulamentada pelo Decreto nº 10.282/2020, e a Portaria nº 356/2020 do Ministério da Saúde, que estabeleceram regras para o isolamento das pessoas e até de seus bens, além da consequente restrição de sua locomoção.

 

Não bastasse isso, estabeleceu-se ainda que o descumprimento de tais medidas pode levar à prisão do infrator pelo crime do art. 268 do Código Penal, que pune criminalmente a conduta de “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, pelo que se nota a gravidade na restrição do direito de ir e vir.

 

Todavia, insta perguntar: como fica a questão da constitucionalidade de tais normas, visto que, como já vimos acima, o estado de sítio é a única situação para a qual há autorização expressa para restrição generalizada da liberdade de locomoção?

 

E mais. Prefeitos e governadores podem restringir o direito constitucional de livre locomoção por decreto?

 

Claro que não, um decreto não pode ensejar prisão, visto que, como é cediço, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CF).    (g.n)

 

É certo que estamos passando por uma situação onde realmente não temos como manter os padrões normais de convivência; contudo, é preciso que o modelo de resposta esteja ajustado e compatibilizado à legislação brasileira. As situações limítrofes irão se multiplicar e quando a saúde e a segurança, ainda que indiretamente, forem contrapostas às liberdades e garantias individuais, encontrar um ponto de equilíbrio na legalidade é tarefa que se impõe.

 

Entretanto, é certo também que nunca podemos deixar de vista a luta pela manutenção de direitos que foram conquistados mediante tanta luta e sangue de nossos antepassados e que não podem ser usurpados por quem que seja.

 

Assim, mesmo parecendo exagerado - visto que se não houver vida não haverá ninguém para se locomover -, ouso dizer que defender a vida e a saúde, em alguma medida, pode ser tão importante quanto lutarmos para impor limites para que - dentro da razoabilidade que deve cercar todos os atos da vida humana - nosso direito de ir e vir seja sempre respeitado e mantido.

 

Que Deus nos dê – e a nossos governantes – a sabedoria necessária para sabermos viver nesse tempo, respeitando os direitos alheios, mas mantendo de pé os valores que garantem e representam uma sociedade justa, digna e vitoriosa.

 

Afinal de contas, como disse o grande filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): “Povos livres, lembrai-vos desta máxima: A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada”.

 

 

 

Fontes de consulta:

 

- https://www.migalhas.com.br/depeso/325170/tempos-de-pandemia-e-o-direito-constitucional-de-ir-e-vir;

- https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/opiniao-direito-saude-prevalece-ir-vir;

- http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44280/direito-de-ir-e-vir-na-sociedade-brasileira;

- https://jus.com.br/artigos/80571/covid-19-e-o-embate-entre-o-direito-de-ir-e-vir-e-o-direito-a-saude.

 

 

 

 

Vagner Antônio de Souza é advogado, Procurador Municipal, 1º Vice-Presidente da Primeira Igreja Batista de Cachoeiro de Itapemirim, Bacharel em Teologia, formado pelo CETEBES – Centro de Educação Teológica Batista do Estado do Espirito Santo.

 

(28) 3522-0419

Avenida Beira Rio, 93 - Guandu - Cachoeiro de Itapemirim - ES

© Primeira Igreja Batista de Cachoeiro de Itapemirim. Todos os direitos reservados.

 

Produção / Cadetudo Soluções Web